Introdução:
O Espiritismo é uma religião. Ainda que pese a opinião de Allan Kardec (1804-1869), seu fundador, de que tal afirmação poderia “[...] dar uma ideia muito falsa, quer do Espiritismo em geral, quer em particular do caráter e do objetivo dos trabalhos da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas” [1] – o núcleo por ele fundado para o estudo e a pesquisa dos fenômenos e da doutrina espíritas –, parece-me impossível negar essa realidade. Não apenas pelo desenvolvimento histórico da nova doutrina e do movimento em torno dela articulado, ao implantar-se em terras brasileiras ainda no século XIX [2], mas de maneira marcante na própria obra kardeciana. Apesar de afirmar o caráter universal do Espiritismo e sua abertura a todo culto ou confissão religiosa [3], será frente à tradição cristã – suas fontes, seus dogmas, suas práticas – que Kardec e o Espiritismo nascente terão de se posicionar. E será a esta mesma tradição que a nova doutrina recorrerá em busca de legitimação para sua pretensão de se configurar como “traço de união” entre ciência e religião. [4]
Este trabalho dá continuidade a artigo anterior intitulado Identidade e Fronteiras do Espiritismo na obra de Allan Kardec [5], no qual proponho uma reflexão sobre o “[...] processo de formação identitária do Espiritismo – doutrina e movimento – a partir de seu discurso fundador presente na obra de Allan Kardec” [6], e trabalho com a relação entre “Espiritismo” e as três instâncias a que Kardec recorre a fim de legitimar seu discurso: ciência, filosofia e religião. O objetivo ali era demonstrar como, nesta interação, a identidade do Espiritismo se consolida ao estabelecer fronteiras, numa relação de relativa superioridade e de superação, frente a essas três instâncias, sem, no entanto, abrir mão do uso de sua linguagem e de suas fontes. Neste contexto, o conceito de Espiritismo se apresentaria como um conceito híbrido, o qual indicaria o caráter mediador da nova doutrina e do movimento articulado em seu entorno.[7]
No presente trabalho, pretendo retomar alguns elementos dessa reflexão prévia, aprofundando-os, ao analisar o modo como a identidade religiosa do Espiritismo (doutrina e movimento), é forjada na obra kardeciana em continuidade com a tradição cristã – principalmente na sua versão Católico-Romana – a partir da apropriação e releitura de suas fontes e de alguns elementos de sua dogmática. Para tanto, me aterei, sobretudo, a seus três últimos livros publicados – O Evangelho segundo o Espiritismo (1864); O Céu e o Inferno, ou a Justiça Divina segundo o Espiritismo (1865); e, A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo (1868) – sem, contudo, excluir qualquer referência a suas demais publicações. Tais obras foram priorizadas porque será nelas que o autor se debruçará com maior acuidade sobre as questões das relações entre Espiritismo e Cristianismo. Nessa abordagem, a obra de Kardec é encarada como um discurso que postula, ao lado de outras coisas, garantir à doutrina espírita seu droit de cité frente aos sistemas e instituições de representação que não o próprio Espiritismo. Nesse caso específico, a religião cristã.
[Este trabalho foi originalmente apresentado no 23º Congresso Internacional da SOTER, 2010, Belo Horizonte, e publicado integralmente em: Anais do 23º Congresso Internacional da SOTER - Religiões e Paz Mundial - Grupos Temáticos. São Paulo : SOTER - Paulinas, 2010. p. 329-341. - ISBN: 978-85-356-2691-9. Para a leitura completa clique aqui].
[1] KARDEC, Allan. Refutação de um artigo do “Univers”. In: ______. Revista Espírita. Jornal de Estudos Psicológicos. Ano Segundo – 1859. Rio de Janeiro: FEB, 2007, p. 196.
[2] No meio acadêmico, entre os estudiosos do Espiritismo no Brasil, parece haver a tendência em contrapor o modelo brasileiro e o francês com base na distinção entre religiosidade e laicidade (Cf.: STOLL, Sandra Jacqueline. Espiritismo à Brasileira. São Paulo: EDUSP, 2003). Nos últimos anos têm ganhado expressão no seio do Movimento Espírita Brasileiro grupos ligados à Confederação Espírita Pan-americana (CEPA) que defendem o Espiritismo como ciência e filosofia de caráter laico (não-religioso).
[3] Cf.: KARDEC, Refutação de um artigo do “Univers”, op.cit., p. 205-206.
[4] Cf.: KARDEC, Allan. Aliança da Ciência e da Religião. In: ______. O Evangelho segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2008. p. 60-61.
[5] Cf.: ARAUJO, Augusto. Identidade e Fronteiras do Espiritismo na obra de Allan Kardec. Horizonte, v. 8 n. 16, jan./mar. 2010.(Em Edição).
[6] ARAUJO, op. cit.
[7] A necessária limitação deste artigo não nos permitiu uma discussão mais ampla do termo hibridismo. Seria necessária uma extensa revisão da literatura referente ao tema, o que extrapola nossa possibilidade, no momento. Se, contudo, a origem do termo, na genética do século XIX, remete em sentido amplo a tudo que é composto por elementos diferentes, heteróclitos, disparatados; aqui ele assume o significado de uma tentativa de abrigar sob um mesmo conceito – o conceito de espiritismo na obra de Allan Kardec – três outros conceitos que aparentemente se colocam como antagônicos e irreconciliáveis, sem, no entanto, propor uma síntese que os nivele em importância ou significação. Conforme se verá, o conceito espiritismo em Kardec se apresenta como um conceito híbrido porque retira de suas relações com as representações correntes em seu tempo de ciência, filosofia e religião; e do uso e apropriação de suas linguagens específicas, uma fonte de autoridade e de suposta articulação desses saberes a partir de uma posição mais abrangente e superior.
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