Livro

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Allan Kardec: autor da doutrina dos Espíritos? *

Da comparação e da fusão de todas as respostas, coordenadas, classificadas, e muitas vezes retocadas no silêncio da meditação, foi que elaborei a primeira edição de O Livro dos Espíritos, entregue à publicidade em 18 de abril de 1857. (Allan Kardec) [1]

Quem quer que tenha tido em mãos um livro de história da filosofia deve ter notado que logo nos primeiros capítulos são apresentadas as doutrinas filosóficas dos chamados filósofos “pré-socráticos” ou “fisiólogos”. O que, talvez, poucos saibam é que não existe, a rigor, a doutrina filosófica de Tales de Mileto, ou de Heráclito de Éfeso, por exemplo. De fato, a maioria dos textos que dispomos desses pensadores é insuficiente para se afirmar a existência de tal doutrina. O que se tem são fragmentos (frases, pedaços de frases, às vezes, uma única palavra) citados ou parafraseados por outros autores e filósofos. Uma lista tão variada que inclui pensadores como o grego Aristóteles e o cristão e pai da Igreja Clemente de Alexandria; e tão extensa que cobre o período desde o século IV a.C. até o século VI d. C.

Assim, se tomarmos Heráclito como exemplo, é preciso que se diga que não há o livro "Sobre a natureza", a ele atribuído [2]. Nem sabemos ao certo se ele escreveu mesmo um livro; ou, em caso afirmativo, se era esse mesmo seu título. Aquilo que nos manuais de história da filosofia é apresentado como a doutrina de Heráclito é tão somente uma interpretação arbitrária dos fragmentos encontrados e catalogados [3]. No século XX, o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) demonstrou que, dependendo da ordem em que os fragmentos são considerados ou organizados, ou dos pressupostos filosóficos assumidos na leitura desses fragmentos, diferentes interpretações se estabelecem. E, dessa forma, as interpretações serão sempre arbitrárias, uma vez que nem a obra original nós temos para comparar e verificar a validade delas [4].

Agora, se, num exercício de analogia, olharmos de maneira isenta para o modus operandi de Allan Kardec (1804-1869) veremos que se passa algo muito semelhante ao que acontece com os historiadores da filosofia no caso acima. Kardec, ao publicar suas obras sempre insistiu que a doutrina não era sua, mas dos Espíritos. No entanto, a confiar ainda nos relatos de Kardec, como se dá esse procedimento de “codificação” da doutrina dos Espíritos? Ele tem fragmentos de ensinos que vêm de fontes diversas e tem de arbitrariamente "codificá-los", ordená-los. E o faz. Nós não podemos verificar se essa interpretação é a mais adequada porque não temos acesso às fontes kardecianas (especificamente não temos acesso ao conteúdo bruto das comunicações por ele interpretadas). Esse impedimento metodológico de verificação tem me impedido de caracterizar o espiritismo como uma ciência.

Em outras palavras: penso que afirmar a existência da "doutrina de Heráclito" nas interpretações dos fragmentos a ele atribuídos, e afirmar que existe uma doutrina dos espíritos na interpretação das comunicações recebidas por Kardec, possui o mesmo grau de incerteza. Ora, como afirma o próprio Kardec na frase citada acima: “Da comparação e da fusão de todas as respostas, coordenadas, classificadas, e muitas vezes retocadas no silêncio da meditação, foi que elaborei a primeira edição de O Livro dos Espíritos, entregue à publicidade em 18 de abril de 1857”. O original diz: "C'est de la comparaison et de la fusion de toutes ces réponses coordonnées, classées et maintes fois remaniées dans le silence de la méditation, que je formai la première édition du Livre des Esprits qui parut le 18 avril 1857" (o grifo é meu).

Aqui gostaria de fazer um breve comentário sobre a escolha do uso do verbo “retocar” para traduzir o francês “remanier”. Não que esta tradução esteja equivocada, em minha opinião ela apenas enfraquece o sentido original do termo francês. A etimologia do verbo “remanier” remete a “manier” que tem o sentido primeiro de “manipular”, tocar com as mãos. Daí que o Dictionnaire de l’Académie Française (6eme Édition, 1835), defina o verbo “remanier” como: manipular novamente, reparar, modificar, refazer. Ou, ainda, segundo o Dictionnaire Poche Larousse (2008): mudar a composição, modificar. No contexto dessa pequena observação, uma tradução mais precisa talvez fosse: "Da comparação e da fusão de todas estas respostas coordenadas, classificadas e muitas vezes reparadas (modificadas, refeitas) no silêncio da meditação, que eu formei a primeira edição do Livro dos Espíritos, o qual apareceu a 18 de abril de 1857".

Uma última analogia, talvez esclareça melhor meu posicionamento. Embora o trabalho de pesquisa que venho realizando, e que culminará na publicação de minha tese de doutoramento, se baseie todo na leitura e interpretação da obra de Allan Kardec, e neste trabalho não se encontre nada que Kardec não tenha dito e pensado, há que se concordar que se trata de meu trabalho e não de Kardec. Penso que não importa se as fontes de uma pesquisa sejam os Espíritos ou um pensador “de carne e osso”; se alguém compila, classifica, modifica, edita, interpreta suas fontes, ele é o autor.

 


* Este artigo foi originalmente publicado em Opinião, Órgão do Centro Cultural Espírita de Porto Alegre (CCEPA).

[1] KARDEC, Allan. A minha iniciação no espiritismo. In: ______. Obras Póstumas. Rio de Janeiro: FEB, 2009. P. 353. (Trad.: Evandro Noleto Bezerra). O texto original em francês é: "C'est de la comparaison et de la fusion de toutes ces réponses coordonnées, classées et maintes fois remaniées dans le silence de la méditation, que je formai la première édition du Livre des Esprits qui parut le 18 avril 1857". (Cf.: KARDEC, Allan. Ma première initiation au espiritisme. In: ______. Oeuvres Posthumes.Union Spirite Française et Francophone. s/d. p. 128).

[2] O título Péri Physeos (em grego) é um título genérico atribuído a grande parte das supostas obras dos pensadores gregos originários.

[3] No início do século XX, o helenista alemão Hermann Alexander Diels (1848-1922) publicou a obra Os fragmentos dos pré-socráticos, na qual colecionou os fragmentos dos chamados pré-socráticos e os classificou, após tê-los retirado das obras onde se encontravam citados ou parafraseados. Posteriormente, Walther Kranz (1884-1960) acrescentou um comentário interpretativo aos fragmentos catalogados por Diels. Esta obra tornou-se, desde então, referência para todos os trabalhos críticos e interpretativos da filosofia antiga. A classificação DIELS-KRANZ, tornou-se normativa para todas as referências aos fragmentos.

[4] Ver: HEIDEGGER, Martin. Heráclito. A origem do pensamento ocidental. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998. (Trad.: Márcia Sá Cavalcante Schuback). Para outra interpretação, ver: BERGE, Damião. O Lógos Heraclítico. Introdução ao estudo dos fragmentos. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1969.

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