A Luiz Henrique Eiterer *
O modo como o tema foi apresentado na postagem ‘A tarefa crítica da Ciência da Religião’ pode ter causado a impressão de que os cientistas da religião estejam sempre dispostos a assumir integralmente as exigências críticas frente a seus pressupostos de fé ou àqueles de origem teórica. Ou, em outras palavras, pode ter-se a impressão de que cientistas da religião se assemelham a “anjos” que, livres de qualquer conhecimento prévio, de qualquer atitude prévia, de qualquer posicionamento prévio, encaram seu objeto com total isenção de pressupostos.
Diante disso o que se poderia dizer? Se, em minha opinião, nem mesmo os anjos são imparciais! Na verdade, uma abordagem 100% livre de preconceitos não apenas é impossível, mas – ainda que fosse possível – sobretudo, não é aconselhável. Como bem recorda Marco Antônio Casanova:
A suspensão de nossos pressupostos significaria propriamente uma dissolução de toda orientação prévia e de toda expectativa de sentido em relação ao que se deveria interpretar. Sem tal orientação e tal expectativa, porém, não teríamos nem mesmo como nos aproximar do que deveria ser interpretado, uma vez que é essa orientação e essa expectativa que conduzem a aproximação. Do mesmo modo, não há como imaginar a interpretação como um processo que se constrói paulatinamente do zero e vai ascendendo a um campo de sentido determinado por meio de cada um de seus passos. Se já não lêssemos um texto, por exemplo, guiados por uma expectativa de sentido específica, jamais poderíamos reunir as diversas palavras do texto com vistas a esse sentido, de tal modo que a leitura permaneceria presa a uma pluralidade de frases desconexas. (CASANOVA. 2010, p. XI)
Dessa forma, mesmo preconizando que há uma dupla tarefa crítica em Ciência da Religião, seria inocência acreditar que com isso se quer dizer que ao cientista da religião atribui-se total isenção frente a seu objeto. Assim como acontece no confronto de um leitor com um texto, acontece com um pesquisador frente a seu objeto: quando alguém escolhe um objeto de estudo em Ciência da Religião e se debruça sobre ele, sempre está implicada nessa escolha e nesse debruçar-se, uma atitude interpretativa. E como tal, a atitude interpretativa vem eivada de uma expectativa de sentido, ou seja, por um olhar iluminado pelo conhecimento prévio do pesquisador, por suas crenças (religiosas ou teóricas), etc.
Portanto, quando se fala da tarefa crítica que cabe ao cientista da religião, fala-se antes de que a esse pesquisador caberia “[…] proteger-se da arbitrariedade de intuições repentinas e da estreiteza dos hábitos de pensar imperceptíveis e voltar seu olhar para ‘as coisas elas mesmas’[…]” (GADAMER. 2003, p. 355). Contudo, é preciso perceber que mesmo “esse deixar-se determinar assim pela própria coisa, […], não é para o intérprete uma decisão ‘heroica’, tomada de uma vez por todas, mas verdadeiramente ‘tarefa primeira, constante e última” (Idem, ibidem). Em outras palavras, embora não seja possível ao cientista da religião olhar seu objeto de estudo senão a partir dos próprios pressupostos, os quais configuram sua expectativa de sentido; é imprescindível que o ato interpretativo no qual ele se empenha não seja condicionado por esses pressupostos, a ponto de o pesquisador não poder voltar-se para o fenômeno estudado e dele colher elementos que ultrapassem e reformulem sua visão inicial.
Por isso, ao tratar da ‘tarefa crítica da Ciência da Religião’, citei o exemplo de como um modelo taxionômico assumido acriticamente pode deturpar a visão do pesquisador na interpretação da complexidade de seu objeto de estudo. Ou como um modelo teórico assumido a priori pode transformar uma pesquisa promissora em apenas uma tentativa de fazer caber o objeto nos limites dados pela teoria. No contexto da Ciência da Religião, voltar-se para as “coisas mesmas” significaria, portanto, deixar falar o fenômeno observado em sua complexidade. E, muitas vezes, essa atitude significa que o pesquisador deva colocar em suspenso os preconceitos teóricos ou religiosos – ou antes, colocar-se em alerta quanto às reações e aos julgamentos intempestivos – e ouvir a voz dos adeptos, dos teólogos e praticantes daquela tradição religiosa sob análise, a fim de perceber as nuances e as implicações que seu horizonte teórico não é capaz de contemplar.
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* Luiz Henrique Eiterer (velho amigo dos tempos do Mestrado) propôs um excelente questionamento na seção de ‘Comentários’ do texto ‘A tarefa crítica da Ciência da Religião’. A ele, portanto, é dedicada a postagem de hoje!
2 comentários:
Humm...
Faz bastante sentido isso... embora o cientista da religião deva ter sempre um olhar crítico sobre o objeto de estudo ele também não pode bater de frente com este mesmo objeto ao pesquisá-lo.
A crítica que nasce dentro do discurso religioso é tão importante quanto a crítica da observação externa.
E para que este obsevador externo tenha a possibilidade de criticar por dentro então ele precisa pensar com os recursos (linguagem, argumentos, ideias, ...) da religião pesquisada.
Abraço!
Sim, Vital, na verdade o pesquisador vive na 'corda bamba'... numa tensão entre o objeto (com seu discurso) e as teorias (com seu discurso). Esse parece-me ser o lugar próprio à Ciência da Religião e sua práxis...
Um abraço!
A.
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