A Vital Cruvinel *
O texto que nos serviu de ‘pretexto’ na postagem anterior ainda tem mais a nos ensinar. Nele, Hans-Jürgen Greschat não apenas nos ajuda a traçar o perfil do cientista da religião, a partir da comparação deste campo acadêmico e disciplinar com a teologia e sua prática, mas nos dá ensejo para desenvolvermos uma reflexão sobre a tarefa crítica da Ciência da Religião. E isso de duas maneiras, como podemos constatar no trecho abaixo:
Não é oportuno para os cientistas da religião avaliar outra fé com base na própria. Eles têm a liberdade de pesquisar uma crença alheia sem preconceitos. A questão é apenas saber o quanto dessa liberdade eles suportam. É mais fácil descobrir algo quando se sabe com antecedência o que procurar; por conta disso, há cientistas da religião que têm por costume apropriar-se de critérios já estabelecidos para classificar elementos ou universos como “animismo”, “magia” ou “politeísmo”. Isso significa que não apenas preconceitos religiosos, mas também atitudes intelectuais podem distorcer a compreensão de fenômenos pesquisados no âmbito da Ciência da Religião. (GRESCHAT. 2005, 156-157).
O autor considera aqui que um cientista da religião – diferentemente do teólogo – não investiga um fenômeno religioso com base em sua fé pessoal e gozaria, portanto, da possibilidade de estudar seu objeto de uma maneira isenta de preconceitos. No entanto, ainda segundo o autor, não apenas os preconceitos oriundos de uma perspectiva de fé podem interferir na pesquisa. Há ainda preconceitos tipológicos e teóricos que podem distorcer o fenômeno estudado. Sendo assim, haveria não apenas um, mas dois tipos de ‘preconceitos’ a serem evitados pelos cientistas da religião: o preconceito advindo da fé professada pelo pesquisador e o preconceito nascido da apropriação de ‘critérios já estabelecidos para classificar elementos ou universos’ relativos à religião.
Com relação ao primeiro caso já manifestei minha opinião de que a melhor estratégia para o cientista da religião seja adotar uma postura de ‘agnosticismo metodológico’. Assim, ele ou ela terá a oportunidade de – mesmo professando algum credo religioso distinto daquele que estuda, ou ao estudar sua própria religião de uma perspectiva não-teológica – ganhar um distanciamento mínimo frente ao objeto estudado. A meu ver, essa é uma alternativa viável quando o ‘agnosticismo de fato’ não seja possível.
No segundo caso, o autor se refere aos preconceitos que podem advir de propostas teóricas ou tipológicas retiradas dos autores clássicos de seu campo acadêmico. Embora seja impensável a formação de um cientista da religião sem que ele conheça e tenha familiaridade com esses elementos fundantes da Ciência da Religião, o autor parece considerar igualmente impensável que um pesquisador resolva tomar o caminho mais fácil ao reduzir seu objeto a esses elementos classificatórios prévios.
Gostaria de dar um exemplo: uma das tipologias mais simples na tentativa de classificação universal das religiões é aquela representada pela oposição ‘politeísmo’ x ‘monoteísmo’. Cotidianamente falamos do Judaísmo, do Cristianismo e do Islamismo como ‘religiões monoteístas’, e em contraposição ao ‘politeísmo’ greco-romano ou aquele das religiões indianas, por exemplo. Essa é uma distinção consagrada e que poderia facilmente ser aplicada, sem maiores questionamentos, ao um estudo das religiões afro-brasileiras, não é? A pesquisadora Rita Laura Segato, autora do livro “Santos e Daimones. O politeísmo afro-brasileiro e a tradição arquetipal” (Editora UNB, 2005) parece discordar. Logo na Introdução de seu trabalho, a autora afirma:
Uma das dificuldades que amiúde se apresenta e que parece resumir todos os reducio-nismos que obstaculizam a compreensão do mundo afro-brasileiro pela sociedade envolvente ocorre em torno da tensão monoteísmo-politeísmo – que constitui, de fato, um dos eixos centrais da minha argumentação no livro – , ou sua transposição em termos de contraste entre Ocidente e africanidade. Acontece que agentes simpáticos aos cultos mas não profundamente consubstanciados com a mentalidade tradicional dos seus membros tendem, de acordo com suas lealdades ideológicas de partida, seja a percebê-los como em última instância monoteístas (um exemplo são os já mencionados padres católicos que propõem uma liturgia de inspiração africana), ou a afirmá-las exclusivamente politeístas (como alguns pais e mães-de-santo de origem letrada e comprometidos com as bandeiras da negritude). Contudo, ambas as alternativas, pensadas de forma excludente, são na verdade espúrias à maneira de pensar dos membros tradicionais, que são ao mesmo tempo, mas em horas diferentes, devotos católicos e fervorosos adeptos da religião dos “orixás”. O que introduz nossa dificuldade em acompanhá-los e representá-los adequadamente é que, justamente por seu politeísmo de base, as questões ocidentais da coerência e da consciência não se constituem necessariamente em problemas para eles. (SEGATO. 2005, p. 17)
O texto acima, como vemos, ilustra bem a problemática em torno de uma tipologia classificatória amplamente aceita que – segundo moldes tradicionais – contrapõe de maneira irreconciliável monoteísmo e politeísmo. No entanto, a lógica interna ao fenômeno estudado pela pesquisadora – o culto Nagô ortodoxo do Recife, conhecido também como Xangô – é muito mais densa e complexa que as categorias tipológicas poderiam indicar. Caso a autora ficasse presa a essas representações dicotômicas, essa riqueza e complexidade permaneceriam intocadas e o fenômeno da dupla pertença (católico-candomblecista) presente na prática cotidiana do adepto tradicional, permaneceria incompreensível.
O cientista da religião italiano Carlo Prandi, ao tratar dos problemas de definição e de classificação das religiões (cf.: FILORAMO; PRANDI. 1999, p.253-284), desenvolve reflexão semelhante:
Uma tipologia que se proponha ordenar a grande quantidade de religiões existentes no mundo, passadas e atuais, assume necessariamente um caráter de relativa arbitrariedade, que depende, em parte, dos traços que se pretende sublinhar em cada sistema religioso. Às vezes procede-se recorrendo a critérios bipolares – do tipo: politeísmo/monoteísmo – para melhor ressaltar contraposições que refletem conflitos ou duras passagens históricas de uma fase da hegemonia religiosa para outra (p.ex., politeísmo-paganismo para monoteísmo-cristianismo). Em todo caso, a exigência de rotular as religiões carrega também o risco de construir um mapa abstrato de etiquetas, em si mesmo insuficiente para expressar a complexidade e a polivalência dos objetos assim definidos. (Idem, p.275).
Assim, embora, alguns critérios de orientação pareçam necessários para o desenvolvimento de uma pesquisa, é preciso que o cientista da religião tenha a consciência de que “[…] qualquer tipologia, pelo seu esquematismo, leva a um relativo empobrecimento do objeto examinado […]” (Idem, ibidem).
Contudo, não apenas os critérios taxionômicos interferem e podem distorcer a compreensão dos fenômenos religiosos a serem pesquisados. Atitudes teóricas assumidas a priori também se constituem fatores influentes nessa distorção. Assim, por exemplo, ao assumir como pressuposto teórico a definição marxiana de religião como “ópio”, ou a redução fenomenológica da religião ao conceito de sagrado, uma pesquisa será direcionada não pela observação do objeto, mas por esses pressupostos. E tal pesquisa, dificilmente, poderá ser considerada científica se simplesmente tentar ‘confirmar’ ou ‘legitimar’ essas concepções clássicas, ao invés de tentar falseá-las, desenvolvendo uma atitude crítica perante as mesmas.
Creio ser a situações como essas que Greschat se refere quando afirma: “Isso significa que não apenas preconceitos religiosos, mas também atitudes intelectuais podem distorcer a compreensão de fenômenos pesquisados no âmbito da Ciência da Religião” (GRESCHAT, 2005, 156-157). Creio, igualmente, que com isso fica delimitada, ainda que sumariamente, a tarefa crítica da Ciência da Religião frente a seu objeto e a si mesma.
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* Esta postagem, embora já estivesse prevista, recebeu um maior incentivo pelo questionamento levantado por Vital Cruvinel na seção ‘Comentários’ do texto anterior. Por isso a dedicatória.
4 comentários:
Que maravilha, Augusto!
Post dedicado a mim! Não merecia tanto! Eheh!!!
Minha questão está muito bem respondida e explicada.
Seus textos estão tão bons que me fazem pensar em ser um cientista da religião. E veja que eu amo exatas desde pequenininho.
Abraço!
Seria dos melhores, meu amigo, com certeza! Grande abraço.
Exercitando. Será que os cientistas são anjos vindo do céu prontos a aceitarem a proposta de usarem o critério de falseabilidade para definerem a sua ciência? Acho que não, eles não são anjos.
Ei Luiz! Ótimo exercício! Certamente não seriam anjos prontos a aceitarem a proposta de falseamento para definirem sua ciência. Falarei disso numa próxima postagem. Certo? Um abraço e continue comentando e provocando reflexões.
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