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terça-feira, 20 de setembro de 2011

Reflexões de um Agnóstico *

Quando se trata, [...], da conversão de uma forma ateísta para uma forma religiosa de espiritualidade, ou de uma forma religiosa para uma forma ateísta, é inútil buscar uma demonstração de que estamos na direção certa. (RORTY. 2010, p. 16)

Pessoas que têm muitas certezas me deixam intrigado: elas se tornam peritas em criticar as posições contrárias às suas, mas não conseguem perceber que criticam nos outros atitudes que elas mesmas assumem ao defender seus absolutos. A sabedoria popular avisa sobre isso ao falar daqueles que se sentam sobre o próprio rabo para rir do alheio.

Hoje, lendo um texto que foi compartilhado por um amigo, lembrei-me do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961). O texto em questão relembrava quando, em uma entrevista, questionado se acreditava ou não em deus, Jung teria respondido: “Tudo o que aprendi levou-me, passo a passo, a uma inabalável convicção sobre a existência de Deus. Eu só acredito naquilo que sei. E isso elimina a crença. Portanto, não baseio a Sua existência na crença ... eu sei que Ele existe". (MCGUIRE; HULL, 1982).

Nessa fala, Jung parece um cara de muitas certezas... mas, não quero falar sobre isso agora. A menção a Jung me fez lembrar de um dos conceitos mais interessantes de sua teoria psicológica: o conceito de sombra. Grosso modo a sombra seria composta por aqueles aspectos da personalidade que o indivíduo não gostaria de possuir e que, por isso mesmo, seriam isolados da vida consciente através da repressão, e ficariam guardados no quarto mais escuro do inconsciente. O fato de, na maior parte do tempo, ficar isolada e reprimida não impediria, contudo, à sombra de exercer sua influência sobre a consciência e de se manifestar através do mecanismo da “projeção". Em outras palavras, aqueles aspectos de nós mesmos que mais deploramos e que, por isso mesmo, reprimimos, manifestam-se como uma projeção forte e irracional sobre o outro quando a consciência vê-se numa condição ameaçadora ou de dúvida.

Não sou psicólogo, sequer especialista em Jung. Não defendo a validade terapêutica da psicologia analítica, embora perceba, com meu pouco conhecimento do assunto, na descrição do arquétipo da sombra uma excelente metáfora para compreendermos como certezas demais - e seus corolários, a crítica do outro e a incapacidade de autocrítica - quase sempre configuram uma situação de projeção dos aspectos sombrios de si sobre o outro.

O debate atual entre teístas e ateístas nos dá bons exemplos disso. Nesse campo, todos parecem ter certezas demais!

O texto que li hoje e que me fez lembrar de Jung, é assinado por Purushatraya Swami, um dos líderes espirituais do movimento Hare Krsna no Brasil. E, curiosamente, esse texto me fez lembrar também de Nando Reis que, há alguns dias, declarou em entrevista à revista Playboy que não acredita em deus ou na vida após a morte. Não apenas porque o autor faz referência à declaração de ateísmo por “[...] um talentoso e renomado compositor e intelectual [...]", mas sobretudo porque Nando Reis, há alguns anos, gravou a música “Mantra" com a participação de um coro de devotos de Krsna, lembrei-me dele.

Definitivamente não sei dizer se Purushatraya Swami se refere a Nando Reis em seu texto, eu que faço aqui um movimento de livre associação entre os casos. Tanto no exemplo citado por ele, quanto no caso de Nando Reis, temos uma personalidade influente, fazendo uma declaração de cunho pessoal e espontânea sobre sua falta de fé em deus e na vida após a morte a um veículo de comunicação de massa. E diante disso, achei justíssima a reflexão que o Swami fez tão logo teve acesso à informação: “ ‘Que declaração gratuita!... Quem pode ter essa certeza?... A mim tais palavras soam como uma prepotência inconseqüente (sic)... Nenhuma margem a dúvida?... Um agnóstico teria certamente reações mais honestas... Dada a popularidade da personagem, quantos não tomariam tal afirmação como verdade definitiva e o seguiriam cegamente?...’, esses foram alguns pensamentos que imediatamente ocuparam minha mente".

Embora eu defenda com veemência o direito de livre expressão e, pessoalmente, ache toda essa discussão sobre a existência ou não de deus/deuses inócua e irrelevante, concordo em uma coisa com Purushatraya Swami: um agnóstico, diante do mesmo dilema, teria reações mais ponderadas (não me vejo em condições de julgar a honestidade das opiniões alheias). Como o Swami, contudo, fiquei me questionando: “quem pode ter essa certeza"?

No entanto, diferentemente dele, em mim a pergunta reverbera frente às certezas de ateus e de teístas: “quem pode ter essa certeza?". E, nesse ponto, volto à afirmação e à certeza de Jung, que me parecem ser as mesmas de Purushatraya Swami. Quem pode afirmar, sem se responsabilizar pela influência que terá sobre a vida de outrem: “deus existe, eu sei"?

Como o autor afirma em seu texto: “As idéias (sic) e certezas de Jung ficaram para posteridade. Muitos as adotam". Qual, portanto, a diferença objetiva entre a declaração de Jung e a declaração de Nando Reis? Não estará aquela afirmação tão sujeita à crítica quando a negação do ateu? Um agnóstico, como eu, diria que sim. E a menos que a certeza dos que têm muitas certezas possam se converter em sérios argumentos e evidências, atrevo-me a dizer que o agnosticismo é a posição mais segura do universo.

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* Esse texto foi publicado pela primeira vez como uma ‘Nota’ para meu perfil no Facebook, no dia 19 de setembro de 2011. Aqui apresento uma versão revista e modificada em alguns aspectos formais, sem qualquer mudança nas ideias, contudo. Diferentemente de outros textos que venho publicando, de cunho mais teórico, esse pequeno ensaio é uma reflexão pessoal, um exercício de pensamento. Para os que se interessarem em ler o texto de Purushatraya Swami, na íntegra, eis o link: “Reflexões sobre a vida 4”. Como este também foi um texto publicado no ambiente do Facebook, não sei se aqueles que não tiverem uma conta nessa rede social poderão acessá-lo.

6 comentários:

Gustavo Celedon disse...

Disfrute la lectura de este ensayo. Me concidero teista y estoy convencido que uno puede tener experiencias cercanas a lo divino lo cual nos ayuda a entender o creer en la existencia de algo superior. En este caso no voy a darle un nombre especifico a ese ser divino, porque no es a lo que pretendo apuntar. Entiendo que para otras personas esto no sea asi y que ellos tengan otra vision, forma de ver o interpretar el mundo que nos rodea. En mi opinion, todos los puntos de vista son aceptables, ya que como seres individuales e irrepetibles y entendemos de acuerdo a nuestra experiencia. Muchas gracias por compartir con nosotros tu ensayo, espero resulte tan enriquecedor para otros como lo fue para mi.

Unknown disse...

Gracias Gustavo!

Espero, meu amigo, que agora que você conhece o endereço do blog, apareça por aqui mais vezes.

Grande abraço.

Vital Cruvinel disse...

Adorei o texto, Augusto!

Só acho que as declarações de Nando Reis e Carl Jung são diferentes na ênfase dada às suas certezas.

Se perguntarem para o Nando Reis se ele tem certeza (de que sabe) de que Deus não existe eu acho que ele vai dizer que não.

De todo modo, acho que o agnóstico também não deveria ter a certeza da possibilidade de ter certeza se Deus existe ou não.

Abraço!

Unknown disse...

Na verdade, o foco principal do texto era mostrar, através do uso do conceito junguiano de sombra, como Purushatraya Swami atribui um peso e duas medidas à suposta certeza do ateu famoso e à suas próprias certezas.

Diante da falta de evidências pró ou contra a existência de deus/deuses, a postura do agnóstico, como ele mesmo admite a certa altura, seria a mais adequada. No entanto, ao citar Jung, ele busca corroborar que é possível ter a certeza da existência de deus/deuses; mas não atribui a mesma irresponsabilidade àqueles que fazem essa declaração.

Certamente um agnóstico trabalha antes com a incerteza. E quando declaro que o agnosticismo é a posição mais segura do universo, quero afirmar que em questões onde não se tem evidências, melhor deixar o juízo para depois.

Grande abraço, meu amigo! E obrigado pelas observações.

Vital Cruvinel disse...

Humm...

Compreendi melhor agora. Muito bom!

Mas, se a pessoa acredita (ou não) em Deus por algum motivo especial (que não pode ser apresentado por argumentos ou evidências) então ela deveria por uma questão de responsabilidade abdicar de expressar a sua crença?

Abraço!

Unknown disse...

Certamente não, Vital! Ao menos não no meu ponto de vista. Como digo no texto, sou um veemente defensor do direito de livre expressão. Quem atribui reponsabilidade-irresponsabilidade é o autor que critico (Purushatraya Swami).

Contudo, defendo, do ponto de vista gnoseológico, que o agnosticismo seja uma posição mais segura. Ao menos até que haja possibilidade de se acrescentar algo ao debate.

Para mim, ao final, ateus e teístas partem de decisões puramente pessoais. E como afirma Richard Rorty, é inútil buscar uma demonstração de que se está no rumo certo.