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terça-feira, 23 de agosto de 2011

O que é isto, a Ciência da Religião?

Certa vez a irmã de uma grande amiga, ao saber que tenho me dedicado ao estudo dos fenômenos religiosos, me perguntou à ‘queima roupa’: - “Então, Augusto, deus existe?”. Sua pressuposição era que, sendo doutorando em Ciência da Religião, eu deveria constantemente me debruçar sobre esta questão e ter, ao menos provisoriamente, uma resposta “erudita” sobre o tema. Ou, quem sabe, ela só queria começar amigavelmente uma conversa tocando num assunto que todo mundo sabe que me instiga.

Bem, o fato é que esta não foi a primeira vez, e possivelmente não será também a última, que me fazem este tipo de questão. Acredito que vários colegas do campo disciplinar da Ciência da Religião passam por experiências semelhantes não muito raramente. As pessoas às vezes pensam que faço algo ligado diretamente à Teologia. Que serei padre, pastor, capelão de alguma coisa… ou, simplesmente, que por estudar o Espiritismo eu seja algo como um ‘teólogo espírita’.

A meu ver, nada mais natural. Conforme alerta o cientista da religião Hans-Jürgen Greschat:
O uso da palavra “religião” é corriqueiro, mas parece que somente os especialistas conhecem o termo “Ciência da Religião”. Os demais articulam a vaga sensação de que se trata de “teologia ou algo semelhante”. (GRESCHAT, 2005 p. 17) *.
Essa incompreensão esteve presente inclusive quando, em 2009, o Ministério da Educação e Cultura (MEC), através da Consulta Pública dos Referenciais Nacionais dos Cursos de Graduação, propôs que os cursos de graduação e pós-graduação em ‘Ciência da Religião’ (e suas variações tais como Ciências da Religião; Ciências das Religiões e Ciência das Religiões), fossem todos subsumidos sob o nome genérico ‘Teologia’. Isso mostra que a desinformação acerca dessa área acadêmica, ainda incipiente no Brasil, mas com larga tradição na Europa e na América do Norte, não se restringe apenas às pessoas que não vivem fora do ambiente acadêmico e universitário, mas se estende até mesmo aos órgãos governamentais de educação. Sob a alegação de promover o que chamou de uma ‘convergência de denominação’, o MEC ignorou as peculiaridade epistemológicas tanto da Teologia quanto da Ciência da Religião.

Bem, a pergunta relatada no princípio desta postagem serve como pretexto para pensarmos como a Ciência da Religião dista da Teologia. O cientista da religião não precisa pressupor a existência de deus (ou de deuses), nem a sua não-existência, para executar bem seu trabalho. Ele não precisa nem mesmo ser religioso para tanto. Em minha opinião é até melhor que não o seja, a fim de evitar que seu trabalho, sua pesquisa, se torne apenas um trabalho de apologia de sua crença pessoal. Ao contrário, embora muitas vezes a Teologia já não se debruce mais sobre a questão da existência de deus, ela pressupõe não só uma resposta afirmativa a esta questão, mas a possibilidade de que este deus se comunique e transmita sua vontade ao mundo.
 

Mas, o que distingue

os cientistas da religião dos teólogos?

 

Segundo Greschat: “Os teólogos são especialistas religiosos. Os cientistas da religião são especialistas em religião”. E,  essa diferença diz respeito a 4 (quatro) pontos essenciais, os quais cito abaixo, textualmente:
1) Enquanto os teólogos investigam a religião à qual pertencem, os cientistas da religião geralmente se ocupam de outra que não a sua própria. A tarefa do teólogo é proteger e enriquecer sua tradição religiosa. É sua religião que está no centro do seu interesse. A sede de saber teológico diminui à medida que se afasta desse centro. […].
Os cientistas da religião não prestam um serviço institucional como os teólogos. Não são comandados por nenhum bispo, nem obrigados a dar satisfação a nenhuma instância superior. São autônomos quanto ao seu trabalho. […] Todavia, os cientistas da religião também têm seus focos temáticos – portanto, quanto mais um assunto deles se afasta, menos acentuado é seu interesse acadêmico. […]
2) Os cientistas da religião optam pela pesquisa de uma determinada religião. Pode ser qualquer uma – potencialmente a escolha é ilimitada em termos históricos, geográficos ou tipológicos. Há apenas um critério que reduz o espectro dos seus possíveis objetos de estudo: a própria incompetência. Quem não compreende a língua dos adeptos de uma religião, não suporta o clima da região onde ela se encontra ou pensa que a fé em questão não tem valor deveria optar pela pesquisa de um outro objeto. Os teólogos não têm essa liberdade, uma vez que apenas se ocupam de uma religião alheia quando existe a necessidade de comparação com a sua própria. Todavia, quando isso acontece, são obrigados a estudá-la. […]
3) Quando os teólogos estudam uma religião alheia, partem da própria fé. Ao investigarem como os outros concebem seu deus, crença ou pecado, tomam a própria religião como referência. De acordo com seus critérios, avaliam os demais sistemas como “mais próximos” ou “mais distantes” de sua própria religião, ou, até mesmo, enquadram-nos em julgamentos que determinam categorias do tipo “o objeto traz algumas características religiosas” ou “apenas magia”. Todavia, se algo é natural e indubitavelmente visto como semelhante, criam facilmente pontes entre a própria religião e a outra. Procedimentos desse tipo geralmente não possibilitam um encontro com o outro, ou seja, não chegam a um verdadeiro conhecimento de outra fé. Em outras palavras: são estritos demais para aprofundar a relação com o objeto de estudo.
Não é oportuno para os cientistas da religião avaliar outra fé com base na própria. Eles têm a liberdade de pesquisar uma crença alheia sem preconceitos. A questão é apenas saber o quanto dessa liberdade eles suportam. É mais fácil descobrir algo quando se sabe com antecedência o que procurar; por conta disso, há cientistas da religião que têm por costume apropriar-se de critérios já estabelecidos para classificar elementos ou universos como “animismo”, “magia” ou “politeísmo”. Isso significa que não apenas preconceitos religiosos, mas também atitudes intelectuais podem distorcer a compreensão de fenômenos pesquisados no âmbito da Ciência da Religião.
4) Os fiéis de uma determinada crença é que vão informar se entendemos adequadamente uma fé alheia. Consultar adeptos de uma religião pesquisada é um teste de segurança que permite diferenciar descrições válidas e não válidas do ponto de vista da história da religião. Os teólogos têm meios próprios para distinguir o que é “verdadeiro” e o que é “falso” na área da religião. Para eles, a própria fé – e não a de outras pessoas – é a norma decisiva, uma vez que apenas ela é considerada verdadeira em oposição às outras, que são avaliadas como falhas. (GRESCHAT, 2005. p. 155-157. Excertos.)
A citação é longa, mas esclarecedora. Gostaria, contudo, de acrescentar algumas observações a fim de que não fique a impressão de que eu a subscreva em sua integridade.
 
Obviamente concordo com a distinção primária que Greschat faz entre os teólogos e os cientistas da religião, e que é a raiz de todo o trecho reproduzido aqui: “Os teólogos são especialistas religiosos. Os cientistas da religião são especialistas em religião”. No entanto, a afirmação: “Enquanto os teólogos investigam a religião à qual pertencem, os cientistas da religião geralmente se ocupam de outra que não a sua própria”, se for lida apressadamente pode nos fazer acreditar que somente alguém religioso [alguém que tenha sua própria fé religiosa]poderia se ocupar em Ciência da Religião. Claro que isto não é necessariamente assim. De fato, acredito e defendo ser melhor que o cientista da religião não seja uma pessoa de convicções religiosas. Evidentemente este não é um requisito absoluto. Pessoalmente tenho visto muitas pesquisas de colegas que, pertencendo a determinado credo religioso, mantêm sua integridade como pesquisadores não transformando seu labor em apologia de sua religião – mesmo quando a têm por objeto de estudo - ou crítica teologicamente motivada a qualquer outra religião diferente da sua. De qualquer forma, para que essa integridade seja mantida, é necessário, a meu ver, que o cientista da religião [seja ele religioso ou não] se coloque numa posição de ‘agnosticismo metodológico’.
 
Neste sentido, outro elemento, a meu ver, passível de crítica é a afirmação: “Os fiéis de uma determinada crença é que vão informar se entendemos adequadamente uma fé alheia. Consultar adeptos de uma religião pesquisada é um teste de segurança que permite diferenciar descrições válidas e não válidas do ponto de vista da história da religião”. Embora eu compreenda que consultar os adeptos da religião que se estuda seja um “teste de segurança” válido e necessário para o cientista da religião, não consigo conceber essa prática como um critério absoluto para “diferenciar descrições válidas e não válidas” do ponto de vista da história daquele credo específico. Sabe-se, por exemplo, que as narrativas religiosas tendem a mitificar seu passado histórico, concedendo-lhe, muitas vezes, um estatuto ontológico diferenciado da ‘história secular’. Acontecimentos e personagens podem ser, ao longo do tempo, reinterpretados à luz de seu significado religioso, sem um compromisso estrito com sua verdade histórica ou biográfica. Sendo assim, creio ser necessário ao cientista da religião distanciar-se criticamente de seu objeto, sem se comprometer a priori com qualquer posicionamento ideológico, seja ele religioso ou teórico. O que, claro, não implica em que o estudioso se torne surdo aos relatos e à crítica dos adeptos da religião que tem por objeto de pesquisa.

Ufa! Acho que esse é um bom começo de conversa. O que acham?
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3 comentários:

Vital Cruvinel disse...

Ótimo começo de conversa!

Augusto, você poderia comentar (ou exemplificar) o último trecho do ponto 3 iniciando em "há cientistas da religião que têm por costume apropriar-se de critérios já estabelecidos"?

Abraço!

Unknown disse...

Oi Vital, que bom que gostou da "prosa" inicial! Vou tentar responder a seu questionamento na próxima postagem, certo? Assim, vamos conversando... um abraço!

Vital Cruvinel disse...

Combinado, Augusto!

Fico aguardando um novo post.

Abraço!